Para ser justo, isso só acontecia uma ou duas vezes por inverno. Mudei da Maia para Gaia (naquele tempo só podia mudar uma letra de cada vez) e voltei a encontrar a mesma coisa, mas nessa altura já tinha aprendido a reconhecer os sinais indicadores de quem tinha porcos na garagem. Não era o cheiro (os porcos são animais notoriamente limpos se forem bem tratados). Era a avidez dos cães que viviam nas casas dos vizinhos. Tinham uma agitação que indicava que os porcos andavam à solta. Ou a-trotter, ou o que quer que fosse. Quando a matança começava, os gritos do porco eram quase abafados pelos uivos extasiados da população canina local. Não há muitas hipóteses de dormir no dia da matança do porco.
É claro que já não fazem isto muitas vezes. Não estou a dizer que não matam porcos. Matam. Mais de 17.000 porcos são mortos todos os dias no país, mas cada vez menos o são fora dos matadouros aprovados, à medida que as regras para o abate em casa se tornam mais rigorosas. Já mudei de casa algumas vezes desde que os últimos vizinhos que matavam porcos me acordaram e os nossos actuais vizinhos criam os seus porcos do outro lado da aldeia. É aí que os porcos deles apanham a faca, pelo que só ouvimos o barulho se houver um vento forte de leste. Embora estes vizinhos abatam os seus porcos do outro lado da aldeia, fazem toda a desmancha e defumação na casa ao nosso lado. O trator é retirado do local onde costuma estar, na parte de baixo da casa, e o porco morto é trazido para dentro e pendurado; as facas são afiadas e são colocadas tigelas grandes. Logo se sente o cheiro inconfundível dos pêlos da pele a serem queimados e assim começa o longo processo.
Em comparação com muitas pessoas que conhecemos, não comemos muita carne e quando a comemos é sobretudo carne branca, embora tenha de admitir que gostamos de um pouco de carne de porco de vez em quando. Gostamos de comida vegetariana, mas nunca quereríamos ser apenas vegetarianos. O que aprendi em Portugal é que ter uma consciência clara do processo pelo qual os animais são abatidos e depois esquartejados (ou seja, ter tudo feito no jardim do vizinho e, por vezes, mesmo à nossa frente) é uma fase importante para aceitar a realidade de ser um comedor de carne. Fechar os olhos e os ouvidos à forma como a carne é preparada não é defesa nenhuma para quem come carne. Se não consegue aceitar o processo pelo qual a carne chega ao prato, então talvez não mereça estar no topo dessa cadeia alimentar em particular.
Há pouco tempo, o meu irmão veio cá passar uns dias e fomos comer fora, como se faz, num restaurante rural escondido. Estávamos ocupados a saborear a nossa refeição sem carne de porco e a apreciar a conversa de dois outros comensais, que tinham escolhido sentar-se em mesas separadas, em lados opostos da sala, para terem a sua pequena conversa. O senhor de idade, chamemos-lhe Senhor Alto, era uma daquelas pessoas que estão convencidas de que o mundo inteiro quer saber a sua opinião sobre todo e qualquer assunto. A senhora idosa, chamemos-lhe Senhora Surda, era muito entusiasta a responder ao que lhe era dito e tinha sempre uma réplica rápida. No entanto, raramente ouvia corretamente o que lhe era dito e, por isso, a "conversa" gritada do outro lado da sala era um pouco desarticulada.
O meu irmão, sem perceber uma palavra do que se estava a passar, concentrava-se no seu cabrito assado. A minha mulher e eu estávamos a gostar bastante desta peça de teatro amador quando os procedimentos foram interrompidos por dois homens que entraram pela porta da frente com um porco morto inteiro aos ombros. Tinha sido eviscerado, mas estava inteiro. Atravessaram a sala de jantar, com os pés pendurados, que por pouco não atingiam as cabeças dos comensais, e o discurso Alto/Surda foi interrompido. Os homens levaram o porco diretamente para a cozinha. Divertimo-nos com o facto de ter sido entregue pela porta da frente e não pela porta das traseiras, que é muito útil. O Sr. Alto declarou em voz alta que voltaria durante a semana para provar um pouco daquilo. A Sra. Surda concordou com veemência. As cabeças dos outros comensais acenaram em sinal de apreço e todo o episódio foi muito aplaudido. Perguntei-me qual teria sido a reação num restaurante na Grã-Bretanha se um porco inteiro morto tivesse aparecido de repente na sala de jantar. Duvido que fosse recebida com acenos de aprovação. Mas serviu para me lembrar que, com demasiada frequência, estamos afastados da realidade daquilo que fazemos todos os dias e que não é mau receber alguns avisos, quando o verniz da respeitabilidade é quebrado.
Fitch is a retired teacher trainer and academic writer who has lived in northern Portugal for over 30 years. Author of 'Rice & Chips', irreverent glimpses into Portugal, and other books.
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